domingo, 27 de outubro de 2013

tempo

Alice: Quanto tempo dura o eterno?
Coelho: As vezes apenas um segundo.

(Alice no País das Maravilhas)

Despedindo-me da vida aqui, da casinha, destes dois anos e meio de tantas coisas boas, aprendizados e experiências novas, despeço-me também de um tempo outro, de calmaria, de estudos, de vida de casal, de cidade pequena, de fazer as coisas de bicicleta, de não ter dor de coluna. Ironicamente despeço-me deste tempo tranquilo na maior correria, como costumava ser minha vida e como voltará a ser em breve; correria boa, produtiva, cheia, do jeito que gosto. Por outro lado, tendo provado desse tempo subjetivo mais tranquilo, carrego-o comigo e procuro encontrar o tempo para elaborar essa despedida, refletir, dar tempo ao tempo. Entre alegrias, tristezas, despedidas e reencontros, esvaziamento de uma casa e construção de outra, em meio a muitas malas, preparativos para mudanças, pendências finais a resolver e últimos desejos, estava na minha lista de pessoa (novamente) ocupada,  ter o tempo para me despedir também deste blog e refletir sobre esse tempo aqui. Tempo subjetivo, ora tão lento e vazio, ora tão cheio e rápido. Dois anos e sete meses! O que são dois anos e sete meses? Lembro de no início achar que não ia aguentar. Me parecia tanto tempo longe das minhas referências, dos meus queridos, do trabalho, do meu lugar social. E, de repente, é tão pouco, voou, passou, acabou! E voltar, que há pouco era um sonho longíquo e distante, está agora tão perto que parece que já estou no Rio, vivendo de novo minha vidinha antiga, como se nada tivesse mudado. De fato, é engraçado isso da vivência do tempo: se por um lado acho que vai mesmo ser como se não tivesse passado esses quase 3 anos e tudo será como antes no quartel de Abrantes, por outro, carrego comigo 3 gordos anos de uma vida outra, que certamente me marcaram, me transformaram, me ensinaram! Enfim, tô aqui querendo colocar em palavras para elaborar e dividir com vocês essa vivência louca da despedida, ao mesmo tempo tão alegre e tão triste, tão sentida, preparada e esperada e tão assustadora, rápida e irrealizável, mas tá difícil de apalavrar e de encontrar inspiração em meio ao caos externo - casa revirada, vazia, estranha - e interno que rola aqui. Então, já que a ideia é encerrar esse pequeno diário de bordo, na dificuldade de apalavrar o tempo, temática que acho que melhor define esse meu tempo sabático, rico e incrível do outro lado do oceano, selecionei bobamente uns versinhos que dizem desse momento:

Todos os dias quando acordo,
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo.

Veja o sol dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega é da cor dos teus
Olhos castanhos
Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo.
(Renato Russo)



Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...

É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos...
(Fernando Teixeira de Andrade)

domingo, 18 de agosto de 2013

reta final (ou o começo da nova temporada)

Queridíssimos,

como todas as minhas outras coisas nesse momento, esse e-mail estava esperando a resposta da CAPES sobre minha bolsa pra doutorado. Está virando uma tortura essa espera infinita: até as compras do mercado dependem dessa bolsa (quantos litros de leite comprar - aproveitando o luxo de uma ida de carro ao longínquo mercado e considerando que leite é pesado - é uma matemática diretamente ligada ao fato de voltar em dois meses ou ficar mais 18 aqui! Detalhe que essa parte do mercado é a menos sofrida, estando as coisas da vida cotidiana que dependem dessa definição variando desde a revelação de fotos até o contrato do plano de saúde, passando pela compra da passagem de volta e pelo pedido de renovação de licença no Município, todos já no limite do prazo razoável!) Bom, minha ideia era escrever pra vocês já podendo dar a notícia de se volto definitivamente ou só por alguns meses, mas, já que minha ansiedade chegou no limite, resolvi compartilhar com vocês. Afinal, dividi-la é mais interessante do que ficar entrando no site da CAPES e indo em "situação do processo" reapertar o botão "pesquisar" a cada 2 minutos, ou visitando compulsivamente a comunidade facebookiana dos aspirantes a bolsistas, desesperados por notícias e quebrando a cabeça para entender a diferença entre "processo em análise quanto ao mérito" e "processo aguardando parecer da CAPES", ou pior, "processo aguardando parecer da CAPES - aguarde comunicação da CAPES" e "processo aguardando parecer e comunicação da CAPES"! Pois é, estudar pro doutorado virou ocupação para as horas que sobram da contagem de calorias e exercícios frenéticos (finalmente consegui perder os 13 quilos que não me pertenciam mas tinham se apaixonado por mim!! :o), e da tentativa de decifrar os enigmas do submundo da CAPES.
Engraçada essa odisseia: eu que super não queria prorrogar minha temporada aqui, pois morro de saudade da vida aí, acabei entrando na pilha de amigos e do marido e, seduzida por uma remota promessa de maternidade, encarando entrar na concorrência dessa tal bolsa, da qual não fazia a menor questão e que tentaria apenas pra fazer minha parte no desejo do Marco de aproveitar a fama e a possibilidade de estudar mais tempo aqui no paraíso dele. Sim, ele está bombando e me sinto super egoísta de cortar o barato (pula a parte dos lindos bebês, que a gente finge que não pesaram e que eu sou apenas mega companheira e generosa e não uma bomba-relógio-biológico na pré-menopausa, preocupada com a incompatibilidade entre idade fértil e tempo necessário pra ter dinheiro suficiente pra procriar no Rio de Janeiro!) Acabou que a empreitada inicialmente despretensiosa me envolveu e o plano de estudos que escrevi não só me deixou animada com o doutorado - que até então se justificava apenas pela necessidade de estar ligada à universidade pra fazer o estágio em La Borde - mas também crente de que meu projeto era bom e que ia ganhar a tal bolsa (ingênua!) Qual foi meu banho de água fria quando saiu a resposta negativa (bem verdade que, na ambivalência que estou, de início fiquei empolgada com a perspectiva de voltar logo pra minha tão cara vidinha brasileira!) Mas a louca aqui entrou na roubadinha de recorrer e, de novo, me engajar na escrita do recurso e me aproximar ainda mais da minha pesquisa. E nesses quase 3 meses de espera da resposta do recurso, já variei de estados de total descrença quanto à possibilidade de ganhar a bolsa, a especulações sobre essa demora de resultado, com manobras mentais que me levam a acreditar que tenho chances! Enfim, a parte boa disso tudo é que realmente me empolguei com esse tal doutorado. A parte ruim é que meu destino é absolutamente incerto e, se antes era divertido não saber qual seria minha vida nos próximos dois anos, agora as providências urgentes e suspensas estão me tirando do sério! (Detalhe: no meio disso tudo, surgiu ontem um convite pra ser babysitter de dois fofos mini-alemães na... Índia!)
Pelo menos o clima de despedida tem me feito aproveitar isso aqui tão intensamente que acho que estou virando uma alemoa. Ando tomando gosto pelas coisas que eu antes só admirava como quem está de fora: aproveitar cada raio de sol e ir muito ao lago no verão (até nado de óculos e touca, mas ainda não consigo ficar peladona!), fazer longos passeios e até viagens de bicicleta, conhecer a estação de cada fruta e comprar uns legumes esquisitos que eu sempre ignorei, aproveitar o esquema de caronas, super bem-organizado na internet, que é a forma mais barata, solidária e bacana pra viajar, ir a "churrascos", onde num grill elétrico se coloca umas linguiças e uns filés de frango que já são vendidos com molho e achar isso o máximo, fazer geleia das frutinhas colhidas nas "florestas" (que são qualquer espaço verde, na verdade, como o que tem aqui no final da nossa rua. Esta, aliás, chama-se "rua da Floresta Negra", uma querida!)
Enfim, ao mesmo tempo em que conto os dias pra estar aí de volta, fico tristíssima com a perspectiva de que a brincadeira aqui está acabando. De qualquer forma, estarei aí em outubro, seja pra passar uma temporada ou pra ficar. Sim, isso se não formos pra Índia...

Maria

PS: ironicamente, depois de 8 meses de espera, o tal resultado saiu hoje, antes de eu conseguir enviar este e-mail graças a um pau no hotmail que tirou minha conta do ar durante todo o dia: recurso indeferido, neca de bolsa e eu estou curiosamente aliviada e feliz: a volta pro Brasil é pra sempre <3

domingo, 12 de maio de 2013

festa iraniana e mazela afegã



até vir morar na Europa, eu não sabia nada sobre o Irã. Com essa bacana rede que se estabelece entre os estrangeiros,  geralmente a partir do curso de línguas, conheci alguns iranianos. E continuo não conhecendo nada da cultura persa. Mas ela me fascina. Acho que pela surpresa de desconstruir um estereótipo preconceituoso que confunde povo e governo, que me fazia burramente achar que os iranianos eram religiosos extremistas e limitados. Que nada! Pelo menos os que conheci aqui me apresentaram a uma outra imagem: a de um povo alegre, batalhador e que tenta, a duras penas, preservar sua cultura. Outro dia fomos a uma festa de uma amiga iraniana que um dos cursos de alemão me deu. Uma delícia de receptividade, simpatia e alegria. Cada convidado foi apresentado a todo mundo, o que criou uma ambiente super caloroso. Descobrimos que toda festa iraniana, por menor que seja, tem dança (mesmo num pequeno apartamento de um único cômodo na Alemanha, onde o barulho e qualquer incômodo aos vizinhos é impensável depois das 22h!). E que dança!! Me senti dentro de um filme de Bollywood, dentre gregos, russos, mexicanos, americanos, alemães e persas que éramos. 
Ser estrangeiro na Europa tem esse barato de viajar pelo mundo sem nem precisar sair do seu país hospedeiro. Tem-se um mundo numa turma de alemão, ou na rua, ou na academia. Às vezes, são histórias e vidas impressionantes. No meu último curso, tinha um afegão refugiado que foi ameaçado de morte por um grupo extremista que queria informações que ele, que prestava serviço de informática pro governo, tinha. Se ele desse as informações, era morto pelo governo; se não desse, era morto pelo grupo. Disse ao bando que traria informações detalhadas no dia seguinte e pagou todas as suas economias numa fuga ilegal para a Alemanha! Ao chegar aqui sem passaporte e ouvir no aeroporto que seria levado até a polícia, respondeu : "é disso que eu estou precisando!". Ficou 6 meses num abrigo para refugiados políticos enquanto rolava processo para provar sua necessidade de asilo. Fez curso de alemão, foi procurar emprego e agora conseguiu sua autorização de residência. 
E é conhecendo esse mundo de histórias, culturas, multiplicidades e loucuras que as nossas referências, as nossas mazelas, o nosso narcisismo das pequenas diferenças fica pequenininho...

sexta-feira, 12 de abril de 2013

"isso é Alemanha"


Pra quem gosta de dizer "isso é Brasil":

  • Cheguei na Alemanha e meu chip daqui não funcionava de jeito nenhum. Tentei de tudo: configurações, ligar e desligar, escolher rede... Marco foi à loja pra trocar e descobriu a causa do problema: a operadora faliu!! Sem aviso prévio, todos os clientes tiveram suas linhas subitamente cortadas!
  • Chegando de viagem, encontramos mais uma carta na nossa caixa de correio cujo desconhecido destinatário indicado possuía outro endereço, que não o nosso. É a quinta vez que isso acontece...
  • (Essa eu já contei aqui, mas como adoro reclamar do correio alemão, preciso contar de novo): uma correspondência levada ao correio para ser enviada à França (aqui do lado) voltou duas vezes por insuficiência de selos (detalhe que os selos tinham sido colocados pelos próprios funcionários do correio, segundo sua própria metodologia de trabalho!) e, ao ir reclamar, por duas vezes ouvi que não se podia fazer nada, nem sequer reenviar o envelope sem cobrança adicional!
  • recebemos algumas cartinhas ameaçadoras, informando que seríamos processados por um download de filme que não fizemos (talvez o antigo inquilino daqui, cujo maldito contrato de internet herdamos, tenha o feito). Depois soubemos que "empresas" espertinhas se apropriam ilegalmente da informação de sua movimentação na internet pra tentar ganhar um dinheiro com essa "negociação" que evitaria um processo jurídico.
  • Falando de intenet, o tal maldito contrato foi continuado por nós porque as condições eram teoricamente melhores que as de outra operadoras. Acontece que, ao assumirmos, o preço quase dobrou, meu computador não conecta à Wifi, a linha fixa ofertada nunca existiu, o modem foi cobrado, ao contrário do acordado, e cada telefonema pra lá custa 1 euro por minuto e, se você tem a sorte de ser atendido, depois de muito tempo, eles dão uma informação qualquer, que certamente vai ser desmentida pelo próximo atendente (como por exemplo que basta você comprar e apanhar pra instalar um telefone fixo que a tal prometida linha funcionaria!)
  • Outra cartinha ameaçadora cobrava uma grana por um contrato nunca assinado. Demorou até descobrirmos que o tal "contrato" foi um clique dado na internet, aceitando as condições pra se cadastrar numa rede de descontos. Foram 5 correspondências agressivas e assustadoras, coagindo-nos também a um "acordo" para evitar processo.
  • Ah, e não posso deixar de mencionar a obra, a maldita obra! A brilhante ideia de reformar o nosso prédio de apenas 3 apartamentos pra ter acesso à cadeirante e energia solar (genial e subsidiado pelo governo!), conseguiu transformar o que era uma linda casinha de 3 andares, típica daqui da roça, no trambolho amarelo com porta metida à nave espacial mais feio da cidade! E o pior: a pequena reforma, que estava prevista para durar 2 meses, está rolando há um ano e agora está parada por falta de dinheiro! A tal rampa pra cadeirante foi pro brejo e a escada de entrada, refeita para receber a maldita rampa, está no concreto, cheia de entulho do lado.
  • É verdade que a vida no Rio está, sim, bem cara, mais do que aqui. Mas o preço do kilo do tomate aqui sempre foi este do qual tanto reclamam por aí...

Mas...

a diferença de salário entre a faxineira e o presidente da empresa não impede que aquela vá de carro pro trabalho e nem permite que este não faça a faxina de sua própria casa. E isso é tão importante que torna os problemas de serviço banais e que poderia ser desdobrado em milhares e milhares de outros tópicos sobre as vantagens da Alemanha.

(moral da história: na verdade, não se pode reduzir nenhum país a "isso")

sábado, 19 de janeiro de 2013

maridos pouco subjetivados ou hiperjetivados (ou "voltando pra casa" 3)

Ela: então, quando tivermos filho vamos dividir a função de forma bem equilibrada, né, pra saúde psíquica da criança, certo?

Ele: ih, amanhã não tem previsão de neve!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

à la borde

alô!

Depois de um natal maravilhoso com a família muito bem representada por cunhada e primas, e de um ano novo bem caloroso e brasileiro em Paris que me fez entender porque se ama tanto morar lá (o que me fez rever minha pressa de voltar pro Rio...), estou à La Borde. Não do mar, como brincam aqui, mas, refletindo sobre o nome dessa clínica, na fronteira, ou num espaço neutro, um território entre o mundo lá de fora e um lugar subjetivo. Trata-se mesmo de um universo à parte, que tem outro registro temporal. Pra quem não sabe, la Borde é uma clínica psiquiátrica fundada nos anos 50, muito conhecida pelo seu movimento de vanguarda, que revolucionou a psiquiatria clássica. Desde que nasceu essa ideia de me aventurar pela Europa, o estágio aqui era o maior dos projetos. E cá estou eu finalmente, depois de uma novela de milhares de telefonemas quase nunca atendidos,  de e-mails com respostas automáticas informando que o contato deveria ser por carta (!), de papeis difíceis de conseguir, do retorno sucessivo da minha documentação de estágio por conta de erros inacreditáveis do correio alemão, da notícia de que todos os estágios estavam cancelados... Ainda não sei explicar bem de que se trata esse lugar incrível, mas posso fazer uma ilustração ao descrever meus dois dias e meio passados aqui: 

cheguei na estação alguns minutos após o horário do carro da clínica que faz o transporte entre a cidade mais próxima que é servida por trem e o castelo, como aqui é também chamado (fica num antigo castelo tombado!). Liguei pra cá e entendi que eu não era o centro do universo e que não esperavam ansiosos por mim, quando disseram que, claro, o carro já tinha ido embora, apesar do trem de Paris ter atrasado 5 minutos  Esperei o próximo carro por 2 horas e meia, aflita por descobrir qual era a van branca sem identificação que me buscaria. Mas muita gente também esperava a tal van velha, suja e fedorenta. O motorista, um senhor de longos cabelos brancos, chapeu e vários aneis, depois de todos acomodados esperando a partida, mexia - a mão bem trêmula - sem parar na sua bolsa, queixando-se que não poderíamos sair pois ele não encontrava a chave do carro. Detalhe: a chave estava na ignição, com o motor ligado!! Em seguida ele deu a ré pra sair e todos gritaram, alertando-o para o movimento, aparentemente não observado, de carros e pedestres atrás. O "grand tour" pra cá, como definido por uma paciente sentada ao meu lado, foi uma aventura, com entradas radicais nos cruzamentos e o carro morrendo toda hora, além da marcha gritando por ter sido mal engatada! Isso no meio de uma paisagem deslumbrante e da descoberta do Loire, o rio que dá nome à essa famosa região (vallée du Loire). Cheguei perdida, sem saber pra onde me dirigir, ainda com a síndrome de princesa abalada por não ter ninguém pra me receber, mas logo me senti em casa, com vários pacientes me perguntando se eu era brasileira! Um dos pacientes tinha todo um discurso de boas-vindas em português pronto, desculpando-se enormemente de não ter me esperado na estação, explicando que ele era o motorista da van anterior mas que uma paciente informou que eu não viria mais (depois eu soube que a tal paciente sempre suprime alguém da lista de passageiros para vir o quanto antes!). Engraçado, desde que cheguei à Europa tenho que lidar com o estranhamento alheio ao ouvir sobre minha origem e em vez de explicar que meu pai é alemão, reforçando a imagem de que o brasileiro é mulato, conto aquela historinha de que o passaporte brasileiro é o mais valioso no mercado negro pois a gente pode ter qualquer cara. Enfim, aqui, antes mesmo de eu falar meu francês macarrônico, revelando todo o meu sotaque, os pacientes deduzem que sou brasileira e muitos falam algumas frases em português e citam dispositivos de saúde mental do Rio e figurões da reforma psiquiátrica brasileira!!  É que grande parte dos estagiários que vêm pra cá é brasileira e La Borde tem um intercâmbio forte com o Brasil, rolando até viagens com os pacientes pro Rio. Pois caí eu num quarto com duas brasileiras e se, de início, estava torcendo pra isso não acontecer para que eu pudesse finalmente mergulhar de fato somente no francês e sair um pouco da torre de babel que eu estive durante esses 2 anos, tenho achado ótimo poder conversar um pouco em português. Não sei se pela língua ou pelo esforço de tentar entender como funciona essa loucura daqui, mas tenho estado exausta! Achei que teria todo o tempo do mundo pra me dedicar a reescrever meu projeto de doutorado e pra estudar, mas são tantas as atrações daqui e tanto cansaço também, que não sobra tempo. Há mais de 30 atividades ofertadas por dia e eu fico como uma barata tonta, entrando e saindo das oficinas, reuniões e seminários, custando a entender o espírito da coisa. De cara, fiquei com a impressão de que faltava objetividade, de que se discute muito mas não se tira nenhuma conclusão e de que está tudo muito solto. Mas começo a entender que é a proposta mesmo da psicoterapia institucional, que a ideia é promover o encontro, a convivência e refletir, elaborar e reconstruir o tempo todo. É interessante como os moradores daqui são, muitas vezes, super cultos e politizados, e têm uma capacidade criativa enorme (aqui se produz muita poesia, música e pintura de qualidade). Caí no setor de convivência, no salão do palácio, que é lindo, com uma lareira e uma seleção musical impressionante (cada dia foi uma surpresa: de Buena Vista Social Club a Fado!). Aqui é bem como uma comunidade alternativa. Em geral, o povo vive aqui, seja paciente, estagiário ou equipe. Vida pessoal, trabalho e tratamento se misturam e o lema é mesmo a convivência. Todos fazemos a faxina, lavamos a louça, servimos à mesa e ajudamos na cozinha (pra além do exercício de flexibilizar meu excesso de frescura quanto à higiene, acho o máximo!). É impressionante como a coisa dá super certo sem que seja preciso definir quem vai fazer o que quando! Muitas vezes fico sem saber se alguém é paciente ou membro da equipe e logo percebo como a gente tende a buscar rotular, a partir de nossos pré-conceitos, de antemão. Tem sido interessante esse exercício de tentar desconstruir isso (pouco importa saber se fulano é paciente ou equipe!), desligar um pouco da necessidade de organizar, enquadrar ou buscar regras (me dei conta do absurdo da minha ansiedade com a grande profusão de oferta de atividades, que às vezes nem acontecem, sem que eu tivesse uma clareza quanto ao objetivo, ao funcionamento e à conclusão!) Por exemplo: há um aviso de que é proibido fumar em vários dos locais fechados, mas, invariavelmente, fuma-se, e muito, em qualquer lugar (inclusive sentado à mesa, com as janelas todas fechadas!) Acho que não há uma pessoa das cerca de 250 que aqui estão que não fume! E eu achava que não fumaria nada nessa minha fantasia de que esses dois meses aqui serviriam como um SPA! Pois o plano de aproveitar pra comer super regrado e emagrecer foi também por água abaixo. A comida, que eu esperava que fosse ruim, é divina! E além das 3 refeições com entrada, prato principal, salada, sobremesa, pão e, no jantar, queijo, além do café, toda reunião tem um chá, outro café e eventualmente algo mais pra acompanhar (hoje teve Listerine servido num seminário, mas disseram que era refresco de menta!!) Como se não bastasse, tem a farra noturna dos estagiários, com mais guloseimas e bebidas de vinho à vodka...

Mas eu ando tentando ficar recolhida, sem cair na tentação das festas, pois tenho que reescrever meu projeto de doutorado. Essa é outra novidade: vou concorrer, cheia de ambivalência, a uma bolsa da CAPES pra doutorado no exterior! Depois da pilha forte dos amigos de Paris, resolvi embarcar, sem saber bem o que faria se eu conseguisse a bolsa. Mas isso é papo pra um outro e-mail...


Muitos e muitos beijos labordianos

Maria