quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

à la borde

alô!

Depois de um natal maravilhoso com a família muito bem representada por cunhada e primas, e de um ano novo bem caloroso e brasileiro em Paris que me fez entender porque se ama tanto morar lá (o que me fez rever minha pressa de voltar pro Rio...), estou à La Borde. Não do mar, como brincam aqui, mas, refletindo sobre o nome dessa clínica, na fronteira, ou num espaço neutro, um território entre o mundo lá de fora e um lugar subjetivo. Trata-se mesmo de um universo à parte, que tem outro registro temporal. Pra quem não sabe, la Borde é uma clínica psiquiátrica fundada nos anos 50, muito conhecida pelo seu movimento de vanguarda, que revolucionou a psiquiatria clássica. Desde que nasceu essa ideia de me aventurar pela Europa, o estágio aqui era o maior dos projetos. E cá estou eu finalmente, depois de uma novela de milhares de telefonemas quase nunca atendidos,  de e-mails com respostas automáticas informando que o contato deveria ser por carta (!), de papeis difíceis de conseguir, do retorno sucessivo da minha documentação de estágio por conta de erros inacreditáveis do correio alemão, da notícia de que todos os estágios estavam cancelados... Ainda não sei explicar bem de que se trata esse lugar incrível, mas posso fazer uma ilustração ao descrever meus dois dias e meio passados aqui: 

cheguei na estação alguns minutos após o horário do carro da clínica que faz o transporte entre a cidade mais próxima que é servida por trem e o castelo, como aqui é também chamado (fica num antigo castelo tombado!). Liguei pra cá e entendi que eu não era o centro do universo e que não esperavam ansiosos por mim, quando disseram que, claro, o carro já tinha ido embora, apesar do trem de Paris ter atrasado 5 minutos  Esperei o próximo carro por 2 horas e meia, aflita por descobrir qual era a van branca sem identificação que me buscaria. Mas muita gente também esperava a tal van velha, suja e fedorenta. O motorista, um senhor de longos cabelos brancos, chapeu e vários aneis, depois de todos acomodados esperando a partida, mexia - a mão bem trêmula - sem parar na sua bolsa, queixando-se que não poderíamos sair pois ele não encontrava a chave do carro. Detalhe: a chave estava na ignição, com o motor ligado!! Em seguida ele deu a ré pra sair e todos gritaram, alertando-o para o movimento, aparentemente não observado, de carros e pedestres atrás. O "grand tour" pra cá, como definido por uma paciente sentada ao meu lado, foi uma aventura, com entradas radicais nos cruzamentos e o carro morrendo toda hora, além da marcha gritando por ter sido mal engatada! Isso no meio de uma paisagem deslumbrante e da descoberta do Loire, o rio que dá nome à essa famosa região (vallée du Loire). Cheguei perdida, sem saber pra onde me dirigir, ainda com a síndrome de princesa abalada por não ter ninguém pra me receber, mas logo me senti em casa, com vários pacientes me perguntando se eu era brasileira! Um dos pacientes tinha todo um discurso de boas-vindas em português pronto, desculpando-se enormemente de não ter me esperado na estação, explicando que ele era o motorista da van anterior mas que uma paciente informou que eu não viria mais (depois eu soube que a tal paciente sempre suprime alguém da lista de passageiros para vir o quanto antes!). Engraçado, desde que cheguei à Europa tenho que lidar com o estranhamento alheio ao ouvir sobre minha origem e em vez de explicar que meu pai é alemão, reforçando a imagem de que o brasileiro é mulato, conto aquela historinha de que o passaporte brasileiro é o mais valioso no mercado negro pois a gente pode ter qualquer cara. Enfim, aqui, antes mesmo de eu falar meu francês macarrônico, revelando todo o meu sotaque, os pacientes deduzem que sou brasileira e muitos falam algumas frases em português e citam dispositivos de saúde mental do Rio e figurões da reforma psiquiátrica brasileira!!  É que grande parte dos estagiários que vêm pra cá é brasileira e La Borde tem um intercâmbio forte com o Brasil, rolando até viagens com os pacientes pro Rio. Pois caí eu num quarto com duas brasileiras e se, de início, estava torcendo pra isso não acontecer para que eu pudesse finalmente mergulhar de fato somente no francês e sair um pouco da torre de babel que eu estive durante esses 2 anos, tenho achado ótimo poder conversar um pouco em português. Não sei se pela língua ou pelo esforço de tentar entender como funciona essa loucura daqui, mas tenho estado exausta! Achei que teria todo o tempo do mundo pra me dedicar a reescrever meu projeto de doutorado e pra estudar, mas são tantas as atrações daqui e tanto cansaço também, que não sobra tempo. Há mais de 30 atividades ofertadas por dia e eu fico como uma barata tonta, entrando e saindo das oficinas, reuniões e seminários, custando a entender o espírito da coisa. De cara, fiquei com a impressão de que faltava objetividade, de que se discute muito mas não se tira nenhuma conclusão e de que está tudo muito solto. Mas começo a entender que é a proposta mesmo da psicoterapia institucional, que a ideia é promover o encontro, a convivência e refletir, elaborar e reconstruir o tempo todo. É interessante como os moradores daqui são, muitas vezes, super cultos e politizados, e têm uma capacidade criativa enorme (aqui se produz muita poesia, música e pintura de qualidade). Caí no setor de convivência, no salão do palácio, que é lindo, com uma lareira e uma seleção musical impressionante (cada dia foi uma surpresa: de Buena Vista Social Club a Fado!). Aqui é bem como uma comunidade alternativa. Em geral, o povo vive aqui, seja paciente, estagiário ou equipe. Vida pessoal, trabalho e tratamento se misturam e o lema é mesmo a convivência. Todos fazemos a faxina, lavamos a louça, servimos à mesa e ajudamos na cozinha (pra além do exercício de flexibilizar meu excesso de frescura quanto à higiene, acho o máximo!). É impressionante como a coisa dá super certo sem que seja preciso definir quem vai fazer o que quando! Muitas vezes fico sem saber se alguém é paciente ou membro da equipe e logo percebo como a gente tende a buscar rotular, a partir de nossos pré-conceitos, de antemão. Tem sido interessante esse exercício de tentar desconstruir isso (pouco importa saber se fulano é paciente ou equipe!), desligar um pouco da necessidade de organizar, enquadrar ou buscar regras (me dei conta do absurdo da minha ansiedade com a grande profusão de oferta de atividades, que às vezes nem acontecem, sem que eu tivesse uma clareza quanto ao objetivo, ao funcionamento e à conclusão!) Por exemplo: há um aviso de que é proibido fumar em vários dos locais fechados, mas, invariavelmente, fuma-se, e muito, em qualquer lugar (inclusive sentado à mesa, com as janelas todas fechadas!) Acho que não há uma pessoa das cerca de 250 que aqui estão que não fume! E eu achava que não fumaria nada nessa minha fantasia de que esses dois meses aqui serviriam como um SPA! Pois o plano de aproveitar pra comer super regrado e emagrecer foi também por água abaixo. A comida, que eu esperava que fosse ruim, é divina! E além das 3 refeições com entrada, prato principal, salada, sobremesa, pão e, no jantar, queijo, além do café, toda reunião tem um chá, outro café e eventualmente algo mais pra acompanhar (hoje teve Listerine servido num seminário, mas disseram que era refresco de menta!!) Como se não bastasse, tem a farra noturna dos estagiários, com mais guloseimas e bebidas de vinho à vodka...

Mas eu ando tentando ficar recolhida, sem cair na tentação das festas, pois tenho que reescrever meu projeto de doutorado. Essa é outra novidade: vou concorrer, cheia de ambivalência, a uma bolsa da CAPES pra doutorado no exterior! Depois da pilha forte dos amigos de Paris, resolvi embarcar, sem saber bem o que faria se eu conseguisse a bolsa. Mas isso é papo pra um outro e-mail...


Muitos e muitos beijos labordianos

Maria

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