(originalmente publicado no blog Excluídos Urbanos - http://exurbanos.blogspot.com.br/)
Já faz tempo, ainda mais pra nossa
memória curta e ocupada com um excesso de informações tão avassalador que é
inassimilável. Mas a história de um menino inteiramente desprovido de tudo,
massacrado por uma “repórter” num desses programas sensacionalistas baratos não
me passou batida, como também não passou a tanta gente que comentou na época,
nas redes sociais que tornaram visível esse rapaz invisível. (Só não escrevi
antes porque toda a minha capacidade de escrita estava sendo ocupada pela minha
dissertação de mestrado).
Pra quem não acompanhou na época,
trata-se de uma suposta jornalista que se arvora a justiceira, condenando,
ironizando e humilhando um rapaz detido por roubo e suspeito de estupro (http://www.youtube.com/watch?v=F6VCbJHtzdc). A cena
dantesca traz vários questionamentos: sobre esse tipo de programa, que fere às
finalidades educativas e culturais da concessão pública televisiva; sobre o
papel da mídia na nossa cultura da desigualdade e da criminalização da pobreza;
sobre a questão ética da suposta repórter; ou a interrogação quanto ao acesso
que esses programas têm às delegacias e aos detidos. Mas o que é interessante é
que esse rapaz, ao ser cruelmente desprezado pela entrevistadora,
paradoxalmente sai de sua invisibilidade e vira tema de discussão nas redes
sociais. O garoto, negro, algemado, desdentado e com um hematoma no rosto, vira
centro das atenções, provavelmente pela primeira vez na vida, sob luz, câmera e
um microfone perverso, a partir da ira da loira defensora dos bons costumes e
do bom português.
Não são nada grandes as chances de
cruzar a fronteira da exclusão. Paulo Sérgio, que nunca teve pão, curiosamente
conseguiu deixar o anonimato, virando circo, a partir de seu crime. E foi
assim, por acaso, que entrou no enquadre da Justiça, da qual tanto os
miseráveis quanto os abastados são exceção. Ele agora tem a seu favor um
processo de danos morais, além da possibilidade de responder ao seu delito dentro
dos trâmites legais, em vez de ser mais um invisível esquecido no sistema
prisional. Paulo Sérgio, que é analfabeto, tem seis
irmãos e vive nas ruas desde criança, era um fora-da-lei, pois sem direitos e sem deveres.
Era um marginal não só no sentido de quem comete um crime, mas de quem vive à
margem, fora da Lei, porque fora do pacto social, daquilo que é compartilhado.
O excluído é invisível. Olha-se
pro lado oposto, evitando-se a pobreza, pra não se entrar em contato com algo
do horror, do estranho, do outro, que, defensivamente, deve ser negado. O estranho, o bárbaro, vira inimigo, que deve e merece ser açoitado em
horário nobre. O marginal é a causa da tão
temida violência que precisa ser fortemente combatida, evitando-se a invasão do
de fora da margem com muros, grades, controles de segurança!
Pois
infelizmente parece que é justamente só através da violência que esses
invisíveis ganham algum olhar, nem que seja este do temor e do horror. Ser
marginal, agora como aquele que rouba ou fere os bons costumes, é uma solução
identitária para quem nunca foi visto, é uma resposta à falta de pertencimento,
ou justamente um reflexo deste lugar, ou não-lugar social, à margem, que tantos
meninos como Paulo Sérgio ocupam.
A possibilidade de reconhecimento
é condição fundamental para uma existência que reduza a miséria, não só a
social, mas a miséria da alma, que é algo comum a todos nós, que nascemos
desamparados. Tomara que Paulo Sérgio possa se manter reconhecido e, a partir
disso, possa começar a contar sua própria historia, deixando de ser para nós
apenas um representante de tantos excluídos.
Quando olho sou visto, logo
existo.
Agora tenho como olhar e ver.
Agora olho com criatividade (…).
(Winnicott, 1994, p. 157)
referências:
Bastos, L.A. “ Caminho para as Índias: trauma, compulsão e repetição.” XXII Congresso Brasileiro de Psicanálise. 29
avril - 2 mai 2009. Rio de Janeiro, 2009.
__________. “Exclusão social: aspectos
traumáticos da violência contemporânea.” Revista
Brasileira de Psicanálise, 2006: 57-60.
REIS, E. “Doces e amargos bárbaros.” Polêmica, abril 2012, Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/2985/2132.
Viñar, M. “Qué puede decir un psicoanalista sobre exclusión social?” Rio, que cidade é essa? . Rio de
Janeiro: SBPRJ, 26 octobre 2007.
Winnicott, D.W. A comunicação entre o bebê e a mãe e entre
a mãe e o bebê: convergências e divergências”. Os bebês e suas mães. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.