Sempre fui boa em dar sentido à vida. Lembro, eu ainda
pequena, da minha mãe dizendo que eu era íntegra. Memória pelo menos
parcialmente fantasiada, talvez, pois a resposta da qual lembro não é o que me parece definir integridade exatamente, mas mais essa minha
característica: “É você entrar nas coisas por
inteiro, se engajar”. Bom, pode ser isso mesmo, pois integridade não deixa de
sê-lo e deve vir daí mesmo, de inteiro. Pois desde que meu senso auto-reflexivo
se entende por gente, me sinto sortuda por uma boa cota de pulsão de vida que
constitui minha natureza. De fato, costumo gostar, me envolver e fazer bem o
que quer que eu faça. Faço laços facilmente vida afora. E eles me preenchem
enormemente: família, trabalho, amigos, amor... Paradoxalmente, sinto-me,
tantas vezes, também muito vazia. E se tenho o lado aberto, alegre e receptiva
ao laço com o outro, sou ao mesmo tempo muito fechada, muito acomodada em
mim-mesma.
Essa experiência de viver fora naturalmente ressalta essas
características. É incrível como os dois lados da moeda me são intensos aqui: o
enorme sentido de viver essa experiência riquíssima e o total vazio de estar
aqui, tão longe de tudo que me dá sentido. São inúmeros os pontos favoráveis ao
que viver aqui tem de enormemente construtivo: conhecer outras culturas,
experimentar uma vida completamente diferente, estreitar profundamente meus
laços com o Marco, aprender e curtir cuidar de uma casa (o que se desdobrou em
cuidar também de outras), poder viajar muito pra vários países, aprender outras
duas línguas, estudar, ter tempo livre, viver um outro ritmo. Mas estar longe
de todos e do meu lugar social é também muitíssimo vazio. Aqui não sou ninguém,
ninguém me conhece, não trabalho em nada relevante, não construí uma história,
não tenho uma trajetória. E poderia fazer isso tudo, não facilmente, é claro,
mas não tenho vontade. Estou absolutamente acomodada, recolhida, de férias.
Dei-me conta do quanto não busco construir aqui as coisas que me dão sentido,
do quanto vivo numa certa provisoriedade. É exatamente este o meu sentimento –
de provisoriedade. E, se ao mesmo tempo, saber que isso é momentâneo me faz
suportar estar tão distante de tudo que me constitui, é também o que me impede
de buscar estar melhor.
Esses dias caiu esta importante ficha e tive vontade de não
estar tão acomodada neste tempo até então meramente intervalar. A primeira
reação foi começar uma dieta, visto que esta perspectiva de estar de férias até
de me cuidar me fez engordar muito além dos limites. A idéia de investir mais
no mestrado e passar a dar mais sentido à minha pesquisa, à possibilidade de
estudar , também foi animadora inicialmente. Acontece que a empolgação não
durou nada: o mestrado me é realmente algo quase sem sentido, não fosse a
escrita da dissertação. Tá, não é pouca coisa fazer uma pesquisa que tenho
vontade de fazer há tanto tempo e que tanto tem a ver com o meu trabalho, pro
qual voltarei em breve com essa bagagem. Mas as aulas, a viagem de 5 horas
quase que diariamente, e agora ter que encarar o frio polar pra assistir às
disciplinas que me lembram o primeiro
período de psicologia é realmente algo que têm muito mais a função de me manter
ocupada e sã do que me acrescentar algo, além do aprendizado do francês. Tive o
azar enorme de encontrar um departamento em frangalhos, após um racha em que
vários professores saíram e outros estão desmotivados e a organização está
caótica, além de uma diretora narcisista ao extremo e que acredita que
psicanálise é uma ciência dura!
Bom, resta-me investir em outra coisa que me é tão cara:
laço social. Mas a verdade é que, pra além de toda a dificuldade de me
aventurar nessa empreitada de fazer amigos na Alemanha, fica difícil constituir
um lugar estando dividida entre dois países. Além disso, fizemos a escolha,
super acertada, ao meu ver, de morar muito isolados, tendo a grande vantagem de
ter uma casinha pra lá de especial. Sair não é só difícil pela distância da
nossa casa da cidade e das opções de lazer, mas também pela falta de vontade de
sair de uma casinha tão linda e gostosa. Então nos acomodamos nós dois, o que
também é uma delícia, com nossas sessões de cinema de fim de semana e uma
rotina de aulas, faxina, mercado etc. É bem verdade que tem as visitas, os
projetos de viagem e tanta coisa ainda por vir.
É, e eu aqui reclamando da vida vazia... Acho que é isso que
me mantém bem, que na verdade o buraco de dentro é cercado de tanta coisa boa
que ele só se faz notar de vez em quando!